Clóvis Beviláqua especula sobre Charles Darwin: um episódio interessante [1]
- Núcleo Observando o Sul
- 31 de out. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 2 de nov. de 2021


Gizlene Neder
Gisálio Cerqueira Filho
Aqui vamos tomar um artigo de Clóvis Beviláqua (1859-1944) que se intitula “Aplicações do darwinismo ao direito” publicado na Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife em 1897, onde uma interessante referência a Alexandre Herculano aparece[2]. O darwinismo refere-se à teoria evolucionista do naturalista inglês Charles Robert Darwin (1809-1882), cujos fundamentos estão baseados na ‘seleção natural’ (expressão do próprio Darwin), para explicar a origem, a transformação e a perpetuação das espécies ao longo do tempo. De outro lado projetou forte influência no campo das ciências humanas e sociais trazendo para os estudos por elas realizados a denominação “darwinismo social”. Hoje sabemos o quanto de impróprio tem o ‘evolucionismo social’ aplicado às relações sociais; mas também nos seus vínculos com uma possível teoria da evolução aplicada à história.
Todavia, no título temos o enunciado do aproveitamento das teorias biológicas de Darwin ao direito, então já em processo de absorção pelos estudiosos, como um processo fortemente ideologizado. Este contexto ideológico marcou a virada para o século XX no mundo e no Brasil. Assim, nas pegadas do spencerianismo (Herbert Spencer, 1820-1903) e também do pensamento de Ernst Haeckel (1834-1919), Clóvis Beviláqua aborda o “modelo do rei” (“modelo de príncipe”) como o daquele que, no poder, se anula de um modo muito particular. Diz que o “ideal de rei é o que se constituiu como “rei madraço” (preguiçoso, que pouco se dedica às responsabilidades do poder político), com as virtudes anódinas e femininas (como todas as expressões desqualificadoras aportadas no imaginário das sociedades patriarcais e autoritárias)[3]. Chega a dizer que uma tal realeza se realiza naquilo que se atrofiou[4]; sendo Beviláqua um republicano histórico. Todavia, aqui vamos interpretar “madraço” menos como o rei vadio, preguiçoso e indolente, mas aquele, cujo protagonismo se oculta no “semblante” que faz realizar.
Jacques Lacan[5] formaliza que o discurso é um semblante, sendo ele uma maneira de organizar o gozo. Assim, o semblante é um efeito - seja no plano do significante falado, seja no plano da imagem – que tem por finalidade dar conta do lado insuportável da disjunção entre homens e mulheres.
Já na órbita das leis do direito privado, classifica-as com a hipótese das “leis mortas” pelo desuso e cita Rudolf von Ihering (1818-1892): “um princípio legal que perdeu sua força não merece mais esse nome, é uma roda gasta que não serve mais no mecanismo do direito e que pode dele ser retirada, sem desarranjar-lhe a marcha”[6]. Então Clóvis Beviláqua vai exemplificar melhor com as Ordenações Filipinas (Título 46, § 2, livro IV) recordando “aquele matrimônio presumido que produz a comunhão de bens dos cônjuges, como se estivessem casados segundo os preceitos do direito canônico”[7]. Seria uma união estável avant la lettre?
Outrossim, continua o jurista Clóvis Beviláqua “serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda e manteúda, ou em casa de seu pai ou em outra, em pública voz e fama de marido e mulher que, segundo o direito, baste para presumir matrimônio entre eles”[8]. Todavia, parece-nos que, no direito canônico – e ainda hoje em dia - a questão é mais escriturária, sendo o sacerdote presente a principal testemunha, enquanto os ministros são os próprios noivos.
Esses casamentos presumidos não são outros senão aqueles que “o direito romano conheceu e em Portugal foram frequentes até o tempo de D. Manoel I ”[9]. O interessante aqui é a dispensa de qualquer intervenção sacerdotal ou similar, bastando a vontade das partes e o assentimento dos pais.
“( ...) Porém, uma vez aceitas as determinações do Concílio de Trento para a celebração dos casamentos e não sendo legais aqueles que não fossem pautados por suas prescrições (lei de 08/04/1569) entenderam os civilistas pátrios que só por inadvertências poderiam ter os filipistas mantido aquela disposição contraditória do casamento por simples coabitação e fama". [10]
Era, portanto, uma “disposição morta”; nos termos reiterados por Cândido Mendes[11], que não podia vigorar nem vigorou após a reforma do Concílio tridentino. E diga-se de passagem, que ao estabelecer o seu “Direito Civil Ecclesiástico Brazileiro, Antigo e Moderno”, livro de fé jurídica e de “teologia política”, publicado em 4 volumes entre 1866 e1873, o jurista brasileiro do campo católico ultramontano, prestou relevantes serviços (jurídicos) vaticanistas.
Mas Beviláqua chama atenção, e isto é o que aqui mais nos interessa, para “... a exceção que trazia Alexandre Herculano (1810-1877)[12], que, por seu turno. via nesse dispositivo, a “consagração do casamento civil”[13]. Não deixa de ser curioso que num golpe simbólico da palavra, o casamento que “já existira como “civil” e há tanto tempo, se reassuma como casamento (con)sagrado...
Por outro lado, tal posição tem trazido polêmicas na efetiva participação de Alexandre Herculano na Comissão revisora do Código Civil de Portugal. Já bastante desgastado politicamente pelo clero português, sua participação na Comissão Revisora do projeto de código civil elaborado pelo Visconde de Seabra precisa ser melhor esmiuçada. Do ponto de vista da luta ideológica com as posições mais conservadoras na composição da comissão, Herculano também não assume claramente o lado do reformador jurídico que trabalhou para estabelecer condições possíveis naquela conjuntura para a criação de um código civil moderno em Portugal.
Podemos apontar duas possibilidades interpretativas que não precisam necessariamente ser excludentes: em um primeiro plano, Herculano realmente preferia uma radicalização maior, defendendo a secularização mais acentuada e propondo a ideia de casamento como contrato, tal como aparecia já no Código Civil Francês sob inspiração de Pothier[14]. Quer dizer, casamento civil registrado pelo poder público, distinto do casamento registrado pelo clero nas paróquias onde os casamentos fossem celebrados. Os dispositivos que afinal foram aprovados para o Código Civil moderno em Portugal incluíam o casamento registrado pelos agentes do Estado, mas também abria a possibilidade para tornar “civil” o casamento religioso, realizado e registrado escrituralmente pelo pároco. E num segundo plano, nossa hipótese implica um desconforto psico-afetivo de Herculano, cuja radicalidade na Comissão Revisora expressaria seu cansaço e, de certa foram, uma ‘resistência desistente’, ao invés de ‘irredentista’[15], uma vez que, já havia décadas, que o clero português despejava nele um combate rancoroso por ter sido o agente direto da recolha dos documentos da Igreja para depositá-los em arquivo público. A encomenda havia sido iniciativa da Academia de Ciências de Lisboa e executada em década anterior aos debates sobre o casamento civil em Portugal.
Já em relação aos chamados “dispositivos mortos” , Clóvis Beviláqua reitera que “estamos diante de um édito sem função e sem vida que foi escrito depois mesmo de legalmente extinto; não sendo fantasia firmar que, por ser um caso de persistência, passou à categoria de ‘órgão rudimentar’ e ‘sem função’ da mesma forma que são as mamas incapazes de secretar o leite ou os olhos recobertos de espessa tapagem que intercepta os raios luminosos, como se observa nas toupeiras.
Sim. Elas, toupeiras, enxergam muito mal... mas [...] “recordemos o sáurio, lagartixa que, quando está velha e ficam cegos os seus olhos, entra num buraco que dá para o Oriente e ao sair o sol, olha para ele, se esforça para ver e recobra a vista[16]. E nós não estamos senão no campo da história da natureza; sem preocupações em transplantá-la para a história dos homens.
Considerado por muitos como ideólogo e literato fundador do romantismo nacional português, ao lado de Almeida Garrett, Alexandre Herculano, pode-se dizer, é o herói nacional e a personalidade intelectual que mais representa a complexidade do liberalismo lusitano. Seus restos mortais estão hoje (e desde 1977 – depois da Revolução dos Cravos) no Panteão Nacional do Convento dos Jerônimos de Lisboa.
Referências: [1] Versão work in progress apresentado no VIII Seminário do PPGSD-UFF . Faculdade de Direito - Niterói, 22 a 24 de Outubro de 2019.
[2] BEVILÁQUA, Clovis. Aplicações do darwinismo ao direito” In Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, 1897, Vol. 7, Recife: Editora Pantheon das Artes, 1897, pp. 117-132. Agradecemos ao Dr. Gabriel Souza Cerqueira, a localização deste artigo de Beviláqua.
[3] BEVILÁQUA, Clovis. Op. cit. p. 128.
[4] Idem, idem.
[5] LACAN, Jacques. Seminário 18. De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
[6] IHERING, Rudolf von. Le combat pour le droit apud Bévilacqua, Clovis. Op. cit. p. 128.
[7] BEVILÁQUA, Clovis. Op. cit. p. 128
[8] Ver Ordenações Filipinas 3, 59 § 2 in Teixeira de Freitas, Augusto, Consolidação, art. 100 apud BEVILÁQUA, Clovis. Op. cit. p. 128.
[9] BEVILÁQUA, Clovis. Op. cit. p. 129.
[10] Idem, idem.
[11] Idem, idem.
[12] NEDER, Gizlene e CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Projeto de pesquisa em curso “A recepção da obra de Alexandre Herculano no Brasil: Secularização dos casamentos, religião e cultura política, mas não só...”
[13] Idem, idem.
[14] NEDER, Gizlene. Fogo cruzado - a secularização do direito de família no Brasil e em Portugal In THIESEN, Icléia; SOUZA SOARES, Joice; ROCHA GONÇALVES, Gonçalo. História, memória, instituições: fronteiras Brasil-Portugal. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2018, pp. 111-134
[15] DERRIDA, Jacques. Revista Filosófica de Coimbra, Vol. 13, Edição 26, 2004, ver referência p. 328 e também CERQUEIRA FILHO., Gisálio. Cultura e ... resiliência. Rio de Janeiro, Editora Lúmen Juris, 2018.
[16] CARPENTIER, Alejo. A harpa e a sombra, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1987.
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