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O liberalismo conservador e seus medos: Autobiografia política de Alexis Tocqueville

  • Foto do escritor: NOS - Núcleo Observando do Sul
    NOS - Núcleo Observando do Sul
  • 12 de jan. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 21 de jan. de 2022



Gizlene Neder


Passei toda a tarde vagando por Paris”.


Este é o depoimento revelador, aposto nas lembranças de Alexis de Tocqueville (1805-1859) sobre os acontecimentos de 24 de fevereiro de 1848.

Tocqueville é autor bastante referido no campo dos estudos políticos no Brasil, e foi especialmente estudado no contexto histórico de transição para o Estado de Direito no país, na década de 1990, pós-Constituição de 1988. A tradução do livro e sua publicação foi empreendida pela Companhia das Letras. (1991)[1].

Na conjuntura política e ideológica que envolve o debate político e os rumos da república brasileira nesta segunda década do século XXI (eleições majoritárias de 2022 e os ataques à ordem democrática empreendidos desde 2013), convém recuperar os posicionamentos e as escolhas políticas de setores da classe dominante, tendo em vista a necessidade premente de alargamento do leque de alianças na repactuação política que se faz urgente.

Escritas entre os anos de 1850-1851, num momento de descanso, como relata o autor logo no primeiro capítulo, as “lembranças” objetivaram a afirmação de um depoimento pessoal como observador privilegiado que foi do movimento revolucionário que levou à derrubada da monarquia burguesa de Luís Felipe e à instauração de uma nova república em França. Esta durara pouco, pois já em dezembro de 1851, o golpe bonapartista (de Luís Bonaparte, analisado por Karl Marx no livro “O 18 Brumário de Luís Bonaparte[2]) empalmou o poder e a ditadura durou cerca de vinte anos.

Em suas observações, Tocqueville expressou uma das interpretações possíveis sobre 1848. O pensador francês tem o matiz liberal-conservador. E, como tal, refletiu sobre uma das conjunturas histórico-política mais rica da sociedade francesa. As metáforas usadas pelo autor para referir-se à `Revolução’ representam inequivocamente este liberalismo conservador: catástrofe, perigo, terror; aparecem ao longo do livro com coadjuvantes recorrentes a revelar um posicionamento indeciso face à polêmica monarquia versus república, temas que polarizavam o campo político àquela altura. Mas um fato é evidente, Tocqueville tem medo da força política das classes subalternizadas. Mas estamos falando de um autor que compôs o pacto político constitucional pós queda da monarquia, embora aristocrático. No contexto de radicalização, como bem diz a frase que soltou aparentemente sem medir suas consequências, sua reação às barricadas e a radicalização política foi de indefinição: vagou à esmo pela cidade que tanto amava; atônito e indeciso.

É bom lembrar que o debate entre monarquistas e republicanos no contexto das revoluções europeias de 1848 aparecia naquela conjuntura ideológica como um marco divisor das correntes políticas que se apresentam em luta pelo poder. A queda da monarquia significava a vitória da república, cujos partidários, oriundos de diferentes formações sócio-político-ideológicas (pequena burguesia republicana, socialistas, democratas, tricolores, blanquistas, etc.) empunhavam as bandeiras dos ideais de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade. Nosso autor declara uma adesão moderada às forças republicanas: “...tinha sido fiel até o fim ao juramento prestado à Monarquia, mas a República, implantada sem o meu concurso, teria meu enérgico apoio... (TOCQUEVILLE, p. 108).

O escritor, pensador político e historiador francês destacou-se na vida política de seu país como deputado e como Ministro das Relações Exteriores nos anos de 1848 e 1849. A partir desta participação política foi que se dispôs a recompor suas “lembranças”, oferecendo ao leitor impressões pessoais e informações preciosas que ajudam a reconstruir o cotidiano de uma das conjunturas históricas mais discutidas pelos cientistas políticos e historiadores do século XX. Isto porque tanto a teoria da revolução, quanto a da contra-revolução tomam esta conjuntura como momento-chave para a demarcação dos campos políticos em luta no processo histórico de afirmação e contestação da ordem burguesa na Europa. Para os marxistas, desde a década de 1840, o proletariado estava constituído em várias formações históricas europeias e desenvolveram pautas de lutas próprias e distintas das da burguesia (HOBSBAWN, 1979[3]). Neste sentido, o livro “Lembranças de 1848” é uma leitura que enriquece o debate, fornecendo detalhes e esclarecendo o próprio estudo da teoria política contida em suas duas outras obras (bem mais conhecidas), “A Democracia na América” e o ‘O Antigo Regime e a Revolução”.

Tocqueville dá fôlego e expressão teórica mais elaborada ao liberalismo conservador. Esta vinha se delineando no processo histórico francês desde fins do século XVIII (1789). A alta burguesa assumiu o liberalismo na luta contra o Antigo Regime, que, especialmente na França, reagiu energicamente as mudanças enunciadas pela expansão do capitalismo. Esta reação conservadora empurra a burguesia para alianças incômodas com setores das classes populares (o campesinato, a pequena burguesia urbana e o proletariado em formação). Esta posição difícil força, entretanto, que o próprio projeto político burguês adquira maior clareza política. Tal projeto aparece, de forma madura e límpida, na obra de Alexis Tocqueville. Seus escritos propiciam a distinção entre liberalismo e democracia, frequentemente percebidos como equivalentes, ou como intrinsecamente ligados entre si.

O que distingue o liberalismo abraçado por Tocqueville dos democratas e socialistas seus contemporâneos (marxistas, socialistas ou republicanos radicais) é a sua descrença no desenvolvimento social a partir da plena participação políticas dos setores populares do campo político. A condução política da sociedade não poderia, na sua concepção, estar nas mãos das massas designadas por ele de ignaras e a igualdade produziria a mediocridade social. E o que o distingue da reação conservadora é a naturalidade como admite os conflitos sociais, gerados a partir das aspirações populares à riqueza e ao poder:


Não se percebia que há muito o povo vinha aumentando e levando incessantemente sua condição, sua importância, suas luzes, seus desejos e seu poder? (...) Como é que classes pobres, inferiores, e, no entanto, poderosas, não iriam sonhar com sair da pobreza e da inferioridade, servindo-se do seu poder? “(TOCQUEVILLE, p. 95).


Sublinhe-se que a conjuntura ideológica francesa já apresentara autores de peso para o conservadorismo, que Tocqueville não aderiu: Joseph-Marie De Maistre (1753-1821), Louis-Gabriel Ambroise, visconde de Bonald (1754-1840) e Felicité Robert de Lamennais (1782-1854), para citar três expoentes do conservadorismo clerical!

Portanto, o “vagar pelas ruas”, metaforicamente, remete-nos para o desalento e o desencanto com a política monárquica, reconhecendo a legitimidade das demandas e pautas das classes subalternizadas. O tema esteve presente em suas preocupações sob a forma de um pequeno ensaio publicado em 1835, intitulado “Ensaio sobre a pobreza” (Mémoire sur le paupérisme).[4]

Entretanto, os sentimentos políticos aristocráticos e demofóbicos afloram em seu texto. Claramente uma contradição entre o pensar o sentir em Alexis Tocqueville (CERQUEIRA FILHO, 1982[5]). As imagens de 1848 filtradas pelas lentes deste observador arguto e sensível revelam bem o lugar ocupado pelo liberalismo na formação ideológica francesa. Indo mais fundo neste ponto, podemos destacar algumas das observações contidas no capítulo 8, intitulado, “A festa da Concórdia e a preparação das jornadas de julho”:


“(...) os revolucionários de 1848 não querendo ou não podendo imitar as loucuras sanguinárias de seus predecessores, consolavam-se com frequência reproduzindo as loucuras ridículas. Foi assim que imaginaram dar ao povo grandes festas alegóricas” (TOCQUEVILLE, p. 141).


Sublinhe-se que 1789 marcou a vida ideológica francesa (e também a europeia) com várias alegorias revolucionárias entre as quais as grandes celebrações cívicas. Sem dúvida, a formação aristocrática de Tocqueville o leva a uma postura de desdém, para não falar de repulsa, em relação ao movimento política dos subalternizados (o que não impede, como apontamos acima, de reconhecer como legítimas suas aspirações econômicas e sociais). Ainda lembrando da festa da Concórdia, Tocqueville narrou:


“Uma jovem corpulenta separou-se de suas companheiras e, detendo-se diante de Lamartine, recitou um hino à sua glória; pouco a pouco, foi-se animando e falando de tal maneira que tomou um aspecto assustador, pondo-se a fazer terríveis contorções. Jamais o entusiasmo me havia parecido tão próximo da epilepsia ...” (TOCQUEVILLE, p. 143).


Estas observações, aparentemente pouco importantes, escritas assim como lembranças, permitem-nos ampliar nossa análise sobre o pensamento político de Alexis Tocqueville; e, também, sobre a própria conjuntura sobre a qual ele escreve. Mas é sobretudo pelo caráter memorialista, despretensioso e livre de suas colocações que podemos melhor identificar o homem Tocqueville, com seus valores, sua bagagem cultural; o pertencimento de classe e suas ambivalências e sentimentos políticos; verdadeiras peças de moldura que envolvem seu pensamento político.


Notas

[1] TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848, São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

[2] MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2021.

[3] HOBSBAWN, Eric. História do Marxismo, Vol. 1, História do marxismo no tempo de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[4] TOCQUEVILLE, Alexis. Ensaio sobre a pobreza, Rio de Janeiro: UiverCidade, 2003.

[5] CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A Questão Social no Brasil. Crítica do discurso político, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.


Referências

CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A Questão Social no Brasil. Crítica do discurso político, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.


HOBSBAWN, Eric. História do Marxismo, Vol. 1, História do marxismo no tempo de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.


MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2021.


TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848, São Paulo: Companhia das Letras, 1991.


TOCQUEVILLE, Alexis. Ensaio sobre a pobreza, Rio de Janeiro: UiverCidade, 2003.


[1] TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranças de 1848, São Paulo: Companhia das Letras, 1991. [2] MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2021. [3] HOBSBAWN, Eric. História do Marxismo, Vol. 1, História do marxismo no tempo de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. [4] TOCQUEVILLE, Alexis. Ensaio sobre a pobreza, Rio de Janeiro: UiverCidade, 2003. [5] CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A Questão Social no Brasil. Crítica do discurso político, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

 
 
 

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