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Sobre a Aula Inaugural

  • Foto do escritor: NOS - Núcleo Observando do Sul
    NOS - Núcleo Observando do Sul
  • 12 de abr. de 2022
  • 7 min de leitura

Atualizado: 11 de mai. de 2022


Imagem: Raízes de Van Gogh (1890).


Elvis Oliveira [1]


Professor Gisálio,


Inicialmente, não posso deixar de parabenizá-lo aqui pelos seus 60 anos de docência. É um feito e tanto! Além disso, não posso me abster de comentar as impressões e expectativas positivas que sua aula inaugural me inspirou. Obrigado pelo acento em sala. Eu, Elvis Oliveira, enquanto professor paraense, enquanto acadêmico amazônico, vejo nessa recepção uma incomum prospecção do olhar do sudeste em relação ao norte, refiro-me a poder ser visto como potencial sujeito produtor de conhecimento e não somente objeto de curiosidade (científica ou especulação vulgar). Gratidão.

No mundo visto daqui, do sul do mundo, e a partir de meu microcosmo, existem dilemas e problemas que nos/me parecem ser semelhantes aos encarados pelo Brasil abaixo; falo do desemprego e da desesperança crescentes, tal como o Sr. viu décadas atrás na triste Manaus. Caetano Veloso, aludindo Gregório de Matos, já falava de sua própria terra como “triste Bahia, oh! Quão dessemelhante!”[2].

Meu estado, por exemplo, é um dos maiores produtores de energia elétrica da América-latina e, ao mesmo tempo, pagamos a maior tarifa de energia residencial do país[3]. Temos quase cinco cabeças de gado por habitante e a carne bovina não é mais barata que no sudeste[4]. Minha cidade, Santarém, tem o terceiro pior saneamento básico do Brasil[5]; esgoto despejado sem tratamento no belíssimo encontro das águas dos rios Tapajós e Amazonas. Por mais recente, as águas de Alter do chão, “o Caribe brasileiro” comprometidas por rejeitos e sedimentos de garimpos ilegais que se proliferam ao longo do Alto Tapajós[6], direta e indiretamente incentivados pelo presidente genocida. Meu microcosmo sofre com isso. “Triste Amazônia, oh, quão dessemelhante!”.

Me proponho assim a investir no escrutínio de minhas conjunturas visando meios de atenuar suas mazelas. A análise da disjunção entre natureza e cultura (e como é problemática essa separação), propõe esta segunda como um Kit de conhecimentos e habilidades[7] para lidar com os desafios impostos pela primeira, e que permite aos homens sobreviver e prosperar nos diversos ambientes que habita, nos diz o saber ocidentalizado. Já a cosmovisão apreendida do perspectivismo ameríndio, contesta essa divisão dissolvendo a fronteira entre natureza e cultura, sugerindo a artificialidade dessa racionalização[8]. De um modo ou de outro, minha percepção alcança e meu entendimento reconhece que tanto a utilidade e necessidade ora do carro, ora do barco pra me deslocar pela minha região (do avião, noutros casos), quanto o gesto de pedir para alguém me trazer um computador de Manaus (que já foi viável, hoje peço pelo site da Americanas, sem custo de frete), são problemas práticos resolvidos pela cultura.

Ao mesmo tempo, eu, que escolhi morar na zona rural de Santarém, no interior do interior, olho da minha varanda e vejo o céu pinhado de estrelas, caminho pela mata que é meu quintal, desço a meu igarapé para afugentar um sucurijú que queira comer meus patos, e, enquanto tiro o barro das unhas para corrigir os cadernos dos meus filhos ou sento com eles para ensinar-lhes as escalas do violão, pés na terra sob as árvores do quintal, problematizo a sutileza da linha entre natureza, cultura, arte. Nisso, refazendo meu itinerário pessoal, microcósmico, me dou conta do papel fundamental da educação, que a meu ver é natureza e cultura ao mesmo tempo, pode ter na solução dos sérios problemas conjunturais de minha região, que citei acima.

Eu não nasci professor. Sou um operário como meus irmãos, filho de operário da concessionária de energia, que hoje, privatizada, cobra tão caro (veja eu na conjuntura). Trabalho desde os 11 anos de idade, como ajudante disso e daquilo em oficinas de solda, construção civil, vendendo peixes e galinhas nas feiras, perfumes baratos. Quando privatizaram a concessionária de energia, Rede CELPA, e demitiram meu pai bem próximo à aposentadoria, “tinha eu 14 anos de idade”, trabalhava e estudava. Dois anos depois disso, terminei o ensino médio e ingressei no curso de direito da UFPA, concorridíssimo à época. Mas, a maldita conjuntura me obrigou a ter que escolher entre trabalhar e estudar, já que todas as disciplinas eram de dia. Tranquei o curso e fui trabalhar, éramos 7 irmãos. De dia era operário numa esquadria e à noite era músico de bares e bailes, aprendi a beber e a usar outras drogas. O sonho foi murchando e a matrícula jubilou.

Oito anos depois, uma “Gradiva a minha frente” me abriu os caminhos. Uma namorada, que fazia ainda o ensino médio, sabia de meu interesse pelas letras, sufocado, e me apresentou um texto de Florestan Fernandes. Na verdade, ela roubou o livro da biblioteca da escola dela e me deu. O namoro acabou cedo e o gosto pelas ciências sociais não. Voltei ao ensino superior dividindo a jornada entre o volante de uma Kombi de entregas e o curso de sociologia, um tempo depois, lá estava eu graduado, e recém casado com outra Gradiva, uma pedagoga. Viemos morar numa zona de mata há algumas dezenas de quilômetros de nossos empregos. Melhor assim.

Fiz o processo seletivo do SESI (Serviço Social da Indústria), onde atuei por oito anos, até começarem a demitir os professores de humanas “com viés ideológico”; paralelamente, trabalhei no comércio como supervisor de RH e fazendo “etnografia para o mercado” (e não me orgulho muito disso); atuei na Secretaria se Assistência Social de minha cidade, atendendo à população em situação de rua, promovendo acesso à direitos básicos, comumente negligenciados. E recentemente ingressei no mestrado acadêmico em ciências da sociedade da UFOPA Universidade Federal do Oeste do Pará, optando pela linha de pesquisa Direitos humanos e cidadania ambiental. Estamos no segundo semestre.

Digo tudo isso, professor, para conheceres parte de minhas motivações, as visíveis e dizíveis. Imagino (sociologicamente como Mills), que haja simetria entre certas de nossas ambições. Me refiro ao potencial da compreensão do micro para a explicação de mais que ele; à elucidação do potencial do que dizem as artes, em e além da forma; à consciência da repercussão de minhas tomadas de decisão em relação aos meus estudos, e os dos meus filhos; à importância do expressar-se, e nele, deixar sair o que subjaz à nota, à pincelada, à letra, e que o que saia seja bem influenciado e bom influenciador. Sou daqueles que acreditam na educação e na expressão. Imagino ser.

Resta dizer, ano passado, conclui meu primeiro livro (há diversos em aberto), “A Igreja dos Macacos[9]” um romance sobre a modulação do discurso e o conceito de necessidade. Em que abordo uma situação problema. No contexto em que se passa o enredo, os homens adaptam suas crenças religiosas para que estas possam sobreviver diante de novas necessidades que vão aparecendo. Inicialmente, uma pessoa incomodada com seus pensamentos conflitantes sobre a natureza de Deus decide procurar respostas alternativas para suas questões existenciais, e o faz com toda a sinceridade que pode; estudando seus próprios hábitos, as raízes de suas crenças, comparando ideias religiosas a teorias científicas... e quando acredita as ter encontrado, compartilha tais conclusões com gente igualmente carente de sentido, conforto espiritual e esperança. Disso surge uma nova tendência religiosa que em pouco tempo é amplamente aceita, por diversos motivos; porque os homens estão tão ocupados em prover o seu sustento que acabam sem tempo ou disposição para iniciar suas próprias buscas pessoais; porque as novas respostas atendem às expectativas do estômago e às da fantasia ao mesmo tempo; porque parte dos homens satisfaz a sua Necessidade de Respostas Existenciais acolhendo discursos que não compreendem, mas que são pronunciados de forma eloquente e carismática o suficiente para serem considerados verdadeiros e bons.

É a esse fenômeno que chamamos de Modulação do Discurso. No contexto da obra, é o ato de mudar o que foi dito ou o que era pensado, de maneira consciente ou não, embora frequentemente intencional, objetivando adequar o pensamento e/ou a fala a novas Necessidades Emergentes. Ocorre dentro da individualidade, quando o homem ajusta as informações que tem, de maneira a extrair as conclusões mais convenientes à manutenção de suas esperanças e expectativas de ganhos secundários. Em outros casos, a modulação do discurso sobrevém como relação social, isto é; quando alguns caras usam de suas habilidades comunicativas (uns têm mais, outros menos) para alterar o que fora dito por eles mesmos em outro momento, levando outros a acreditarem e concordarem com as novas falas (ou intencionando fazê-lo); quando os homens reorganizam textos e falas de outros, de maneira a dar novo sentido ao que fora dito, o sentido que lhes convém, conforme o interesse particular vigente.

Portanto, pode ser tanto um paralogismo, um erro de raciocínio de quem, ansioso por respostas, descuidou-se dos métodos e convenceu-se com a própria falácia, ensinando-a como verdade a terceiros, ou, uma construção consciente e intencional, sofisma elaborada com o propósito de enganar a um ou dois, ou mesmo servir de ferramenta de manipulação de massas. Importa dizer que, quem ouve um discurso também pode modulá-lo dentro de si, retendo e combinando o que lhe interessa, ressignificando, ouvindo e vendo tão somente o que deseja ouvir e ver.

É sobre admitir que somos medrosos, mas nem por isso precisamos ser covardes. Chuvas são bem vindas? Podem ser ou não. O solo fertiliza ou alaga, as pessoas ficam resfriadas e os açudes enchem, os rios enchem e alguns transbordam. As poças d’água podem gerar mosquitos que matam, gerar escorregões fatais, podem matar a sede dos animais, e permitir que nasçam girinos, sapos que vão comer as moscas e mosquitos que matam. Ninguém controla a chuva, no máximo dá para abrigar-se dela, ou abrir a cisterna. A natureza é o reino do acaso, da causa, do efeito e do caos. O homem participa dessa natureza e acrescenta a ela a intencionalidade, o ponto de vista e o poder de decisão. A natureza acontece, as pessoas acontecem e escolhem, e escrevem livros.

Se interesse, sinalize. Novamente, obrigado pelo acento em sala.


Santarém, abril de 2022.



Referências

[1] Elvis Nazareno Lira de Oliveira é sociólogo, mestrando em ciências da sociedade na Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa, onde compõe a linha de pesquisa de direitos humanos socioambientais.

[2] VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[3] Ver Agência Pará. Pará é o segundo maior produtor de energia do Brasil. Disponível em https://agenciapara.com.br/noticia/21955/ Acesso em 06-04-2022.

[4] Ver CNN Brasil - Rebanho bovino do Brasil atinge maior nível desde 2016, diz IBGE. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/rebanho-bovino-do-brasil-atinge-maior-nivel-desde-2016-diz-ibge/.

[5] Ver O liberal. Belém, Ananindeua e Santarém estão entre as cidades com pior saneamento do Brasil. Disponível em: https://www.oliberal.com/para/tres-municipios-paraenses-estao-entre-os-piores-em-saneamento-basico-do-brasil-aponta-pesquisa-1.512682.

[6] Ver Folha de São Paulo. Garimpo e desmatamento sujaram água em Alter do Chão, conclui laudo; veja vídeo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/02/garimpo-e-desmatamento-sujaram-agua-em-alter-do-chao-conclui-laudo.shtml.

[7] BRYN, Robert J. et al. Sociologia: sua bússola para um novo mundo. 1ª edição Brasileira. Cengage Learing: São Paulo 2006.

[8] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In:___________. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

[9] OLIVEIRA, Elvis. A Igreja dos macacos: sobre a modulação do discurso e o conceito de necessidade. ISBN 978-65-00-27878-1. Ed ind: Santarém, Santarém 2021.

 
 
 

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