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Sobre lutas por igualdade na América Latina: Subjetividade, saberes e transformações

  • Foto do escritor: NOS - Núcleo Observando do Sul
    NOS - Núcleo Observando do Sul
  • 5 de jul. de 2022
  • 7 min de leitura


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Wilson Couto Borges[1]


Os últimos dias foram palco para dois grandes eventos de grande magnitude para os rumos de um futuro próximo menos desigual para a América Latina e o Caribe, afinal o México, um país da América do Norte, mas que do Norte está distante por conta de suas matrizes, nos permitia um olhar ambivalente sobre o Sul. Nós, por assim dizer, observávamos de fora e de dentro simultaneamente: embora geograficamente fora do Sul, raízes e coração mexicanos marcam a latinidade. O primeiro desses eventos foi a realização da 9ª Conferência Latinoamerica y Caribeña de Ciencias Sociales (Clacso), que teve como palco a Universidad Nacional Autonóma de México (UNAM), na cidade do México, cujo mote foi Tramas de la desigualdad en América Latina y el Caribe. Saberes, luchas y transformaciones. Das muitas reflexões por lá desenvolvidas, uma dimensão ocupou lugar de destaque: a subjetividade. Voltaremos a falar sobre ela, mas, não sem antes tratar de outro ponto igualmente significativo, que foi a vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez na Colômbia, alçando à presidência do país os primeiros políticos de esquerda e a primeira mulher negra da história colombiana. Neste caso, inferimos: a subjetividade se fez presente.

A reflexão que propusemos, cuja a relação subjetividade e política estava manifesta já no título, trouxe contida já na proposta A “uberização da vida” como obstáculo para exercício da cidadania e do direito à saúde, a preocupação com um quadro de acentuada desigualdade experimentada, com acirramento nos últimos anos, pelos países que compõem a região – quadro esse que, se chegou a vivenciar um movimento de busca pela redução da pobreza, deixou quase intacto um cardápio de múltiplos fatores de desigualdade. A “uberização da vida” representava, por assim dizer, uma espécie de experiência subjetiva sentida a partir de dois dispositivos ideológicos: o mérito, imerso num movimento de “busca pelo topo”, e o medo, sentido como a busca desenfreada para não ocupar a base dessa pirâmide. Coincidências à parte, presentes na ausência, Petro e Francia, fantasmaticamente, transitaram pelas ruas, edificações, tendas e corações dos participantes da Clacso-2022 na exata medida em que seus nomes por lá ecoavam.

Do ponto de vista das nossas reflexões, o que estava em jogo era o compartilhar de uma perspectiva que toma o processo de hipervalorização da individuação e da autoresponsabilização, reforçadas pela noção de self mad man, inscritas na proposição de uma “uberização da vida”, como um sintoma da forma como sujeitos sociais exercem seu papel como cidadãos e cidadãs, especialmente no que toca ao exercício do direito à saúde. Com o olhar que compreende o papel dos meios massivos de comunicação como o grande Outro, não negligenciamos o quadro onde uma série de tensões entre o pensar, o agir e, igualmente, o sentir são travadas, sem deixar de lado a concentração de poder, por um lado, seja pela crescente penetração das chamadas redes sociais digitais na configuração e na tessitura de novas tramas sociais, por outro. Nesse quadro mais amplo, o que mais particularmente tem atraído nossos interesses de pesquisa é a investigação que coloca foco na Saúde: a Saúde como política pública, como campo, como prática social que se estrutura nos espaços de construção da democracia representativa e da midiatização.

Tais processos (de certa crise da democracia representativa e das transformações ensejadas pela midiatização) têm produzido efeitos na cena política, capturada como Anatomia de um instante e que estabelecem conexões com dimensões conjunturais e estruturais muita concretas.[2] É com essa perspectiva que um “simples” debate sobre uma proposta de criação de planos populares de saúde escamoteia o real do problema: opera-se um deslocamento do lugar do exercício da cidadania para o do consumo. Inicialmente, partimos da hipótese de que a forma como os meios massivos de comunicação oferece ao debate público as “opções” entre o direito e o acesso ao nosso sistema público de saúde – o Sistema Único de Saúde (SUS) – e aos planos da saúde privados já contém em si uma “sugestão” sobre a opção que se deve aderir, num movimento já evidenciado por Michel de Pêcheux (1996), como construção de enunciados com “sugestões de uso”

Dessa forma, longe de estampar em suas páginas e telas uma informação “neutra, imparcial e objetiva”, o que tais veículos promovem é uma poderosa estratégia de interpelação (ALTHUSSER, 1985) que, ao apontar para uma “falta de alternativas” para o cuidado em saúde ou para uma “terceira via” na política, sob reforço de uma égide da liberdade individual da escolha, acabava forjando um pastiche de opções, condutas, ações – ações essas que, em última instância, são políticas. No entanto, e essa é nossa hipótese central, o conjunto das escolhas que atores sociais fazem no tempo presente não se dá plenamente por aquilo que eles experimentam no momento em que a “informação chega”. Num processo interacional que se inicia na infância e cujo fim não pode ser antecipado, a construção de subjetividades vai se realizar, majoritariamente, pela forma como dispositivos (e as práticas, incluiríamos) comunicacionais, que são dispositivos interacionais, são interiorizadas.

Nesse contexto, a pertinência da premissa lacaniana sobre o Estádio do Espelho (ANDRADE, 2003) é fundamental para a compreensão do processo de construção de tais subjetividades. Se desde a infância a relação entre a criança e o Outro (por exemplo, sua mãe) marca a entrada daquele ser num mundo simbólico, através de complexos jogos, simbolicamenete “encenados”, a internalização da experiência, no Ocidente, passa necessariamente pelo que a mídia vem veiculando. É por isso que nossa proposição sobre o estudo da mídia como esfera da vida que interfere na construção das subjetividades e nas formas como a cidadania é experimentada e exercída, com efeitos sobre a participação política, ganha relevância: ao tomá-la como o grande Outro, a partir de seus estímulos (aqueles postos em circulação), ela passa a ser responsável, em larga medida, por conteúdos social e culturalmente produzidos que, desde a primeira infância, compõe a forma como os processos são interiorizados e as ações produzidas.

A rejeição ao SUS é subjetiva e política! Assim, a sugestão de que todos os cuidados, nesse particular com a saúde, são de nossa responsabilidade – expressa e aceita na adesão à proposta de compra de planos de saúde polulares (?) privados – embora presente nesse momento histórico na agenda de nossos governantes, dialoga com um movimento de individuação e autoresponsabilização construído na longa duração e que atribui ao individuo a gestão não apenas por sua saúde, mas igualmente pelo progresso do país. Com essa perspectiva, olhamos para o passado e tomamos as campanhas sanitárias como grandes propulsoras da conscientização e educação de brasileiros e brasileiras sobre sua saúde. Ora, estaria então tão distante assim na nossa formação social a ideia de que é preciso dar a população mecanismos para que ela mesmo cuide de sua saúde? A resposta a questões como essa não podem ser buscada exclusivamente no tempo presente, sendo necessário o instante (político) como uma fotografia de uma ação política relacionando-a com aquilo que de conjuntural ela guarda, tensionando-a àquilo que de estrutural ela contém.

A centralidade da proposta de “uberização da vida” com que temos trabalhado emerge, então, como possibilidade de compreendermos esse instante como o correspondente filosófico para a dimensão econômica (capitalista) atravessada pela brutal divisão e exploração do trabalho que tem no motorista do aplicativo Uber umas de suas expressões mais bem acabadas. Nesses termos, a “uberização da vida” emergeria como uma categoria explicativa para o fenômeno através do qual ao indivíduo é atribuida todas as vicissitudes para uma ação (ou desempenho) cuja responsabilidade, no mais das vezes, lhe é exterior e anterior. No limite, o que se opera nesse processo é a privatização dos direitos individuais. O empreendedorismo se converte na fantasia ideológica do empreendedor: o indivíduo se desloca do lugar do trabalhador para o do empresário. Com essa pegada, a fantasia do empreendedor se materializa na ação política de compra de um palno de saúde, mas igualmente na escolha de representantes políticos identificados com o discursos neoliberal.

Nos termos aqui propostos, nos vemos diante de um processo analítico em que o assujeitamento do sujeito-uber dialóga com a determinação social em que tais “relações profissionais” (trabalhador x empresa, empreendedor x aplicativo) são esvaziadas de seus contextos de produção se transmutando em relações naturalizadas: o empreender não o é apenas enquanto motorista de um aplicativo, mas sim diante de todos os campos da vida social. É por isso que, entre cobrar do Estado por um serviço de saúde de qualidade e comprar um plano de saúde que o distingua como alguém que por seu próprio esforço adquiri tal produto, a cobrança é para que o Estado ofereça não um atendimento via Sistema Único de Saúde (SUS) mas um plano de saúde a preço popular. Nesse caso, a uberização é o sintoma (o segredo da forma mercadoria, para Marx; a mensagem recalcada, para Freud) da individuação e da autoresponsabilização sujeridos pela ideologia dominante. Ainda que não os tenhamos abandonado, voltemos à Clacso, à UNAM, a Gustavo Petro, à Francia Márquez.

Podíamos inferir que, na mais recente vitória das forças progressistas na Colômbia, tal como acontecera nono Brasil nos idos de 2002, a “esperança venceu o medo!” Entretanto, avaliamos que um dos elementos mais significativos em ambos os casos (mas, poderíamos incluir também as vitórias de Andrés Manuel López Obrador, no México, ou mesmo a de Gabriel Boric, no Chile) é que a subjetividade esteve presente como elemento estruturador da ação política. Com essa perspectiva, ganhou muito em importância a Clacso 2022, não apenas trazendo para o centro dos saberes, das lutas e das transformações desejadas e possíveis a subjetividade. Um Brasil, assim como uma América Latina, menos injusto, menos desigual, mais saudável é uma utopia possível? O México, o Chile, a Colômbia nos permitiram pensar, agir e sentir que tal realidade é possível e está ao alcence dos dedos de nossas mãos!

Cidade do México, junho de 2022


Referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

ANDRADE, R. G. N. Personalidade e Cultura: construções do imaginário. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

BORGES, W. C.; TORRES, R. M. M. “A Saúde no processo de ‘uberização da vida’: a (não) alternativa como processo de interpelação que regula e reforça as estratégias de oligopolização do poder. In: CASTRO, Paulo C. (Org.) Midiatização e reconfigurações da democracia representativa. Campina Grande: EDUEPB, 2019.

BORGES, W. C.; STEVANIM, L. F.; MURTINHO. “Pandemia e Produção de Sentidos: como o controle da Comunicação obstaculiza uma participação cidadã”. In: WESCHENFELDER, A.; FAUSTO NETO, A.; HEBERLÊ, A.; ARAÚJO, I.S.; CORRÊA, L.G.; RUSSI, P. Pandemia e produção de sentidos: relatos, diálogos e discursos. Paraíba: EDUEPB, 2021.

CERCAS, J. Anatomia de um instante. São Paulo: Biblioteca Azul, 2012.

COUTINHO, C. N. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

PÊCHEUX, M. “O mecanismo do (des)conhecimento ideológico”. In: ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contracampo, 1996.

[1] Pesquisador Titular em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. [2] O conjunto das reflexões desenvolvidas no âmbito do Seminário Permanente de Estudos de Subjetividade e Política (Laboratório Cidade e Poder/UFF) tem sido decisivo nessa abordagem.

 
 
 

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