Solidão do homem negro: Um projeto das “solitárias” negras
- NOS - Núcleo Observando do Sul
- 31 de mai. de 2023
- 11 min de leitura

Raphael Barroso Graciano[1]
Diferente do que o senso comum acha, táticas de dividir para governar são conhecidas muito antes da Roma antiga. Seu predomínio dura e durará até o fim da sociedade de classes. Nessa lógica, não é contraditório que a centralidade do capitalismo financie autores “menos radicais”, uma vez que a manutenção da dominação de classe cria a necessidade de controlar os opositores do status quo dentro do jogo democrático burguês, que por sua vez, nada mais é que um limite cedido e regido pela própria classe dominante. No entanto essa tática não é percebida pela própria intelectualidade dos oprimidos porque a aparência dessa maçã do Éden representa tudo aquilo que ela quer extinguir, mas não é possível ser progressista se a essência da maçã é criar pecadores de nascença. Isso ocorre com o conceito de solidão da mulher negra.
Expandida pelos bens (ou não) intencionadas Carla Akotirine e por um setor das feministas interseccionais no Brasil, esse conceito é um completo desligamento da realidade brasileira a qual demostra a falta de “vivência no assunto”, principalmente considerando que essas feministas estão falando de uma categoria aonde a grande maioria de seus membros são os homens negros. Trata-se de um delicioso prato para as forças policiais invadirem as comunidades com resistência e retaliação reduzidas, pois essa ideologia faz que mulheres negras se vejam cada vez menos iguais aos homens negros, e com isso, aceitem a repressão em cima deles.
Como Carla Akotirene e as feministas interseccionais adeptas a esse conceito fazem isso? Reproduzindo a narrativa racista do: “os homens negros não choram. O homem negro é agressivo, bruto e precisa ser vigiado porque sempre causa estrago mesmo sem intenção”. Todavia isso ocorre porque como a própria Akotirene enfatiza:
“A interseccionalidade nos permite partir da avenida estruturada pelo racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, em seus múltiplos trânsitos, para revelar quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz de opressões” (AKOTIRENE, 8 de setembro de 2018).
O erro dessa concepção metodológica está em considerar as metodologias como lanternas que devem serem usadas de acordo com cada situação especifica, porém a questão é que existem lanternas diferentes e cada uma ilumina melhor e mais do que as outras. Em outras palavras, três lanternas que iluminam partes diferente do quarto não desvelam mais que uma lanterna que ilumina quase a totalidade do quarto ao mesmo tempo. O que estamos querendo dizer é que ao separar a realidade em três, Santa Akotirene transforma o mundo em uma Santíssima Trindade aonde a explicação do por que Deus é três e um ao mesmo tempo vira um dogma de fé.
A realidade não é uma tríade ou mais de três, a realidade é una. Todos somos negros, filhos, maridos, empregados, gênero x, sexualidade y, etc. Agimos de maneiras diferente de acordo com a circunstância, mas nada disso fere nosso princípio de identidade. Dessa maneira uma análise que abrange as particularidades deve incluí-las de maneiras integradas. Por exemplo, analisar de maneira separada que João é um bom trabalhador e em casa é agressivo, encobre a causa de João ser agressivo em casa se deve ao fato dele utilizar esse ambiente como catarse da repressão sofrida no trabalho. Três análises para o mesmo caso gera o risco de eclipsar a particularidade que não foi determinada de maneira a priori; é isso que Santa Akotirene faz com a categoria do “homem negro” que será mostrada através do conceito de solidão da mulher negra. Para isso pedimos licença para fazer uma crítica destrutiva, ao contrário da construtiva ao qual pede Santa Akotirene (5 de janeiro de 2022), pois como cantou um cantor nordestino: “sons palavras são navalhas, e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém” (BELCHIOR, 1976).
O conceito de solidão da mulher mulher negra como um projeto para a solidão do homem negro
É muito evidente que no mundo do trabalho as mulheres negras são as mais sofredoras, tanto no critério de seleção, tanto no quantitativo salarial. Basta uma pesquisa de dados econômicos para desvelar o caráter racista-machista-classista da nossa sociedade.
No entanto, ao tentar objetivar os afetos amorosos. o problema fica mais difícil porque afinal, qual é o critério para falar que uma pessoa é valorizada amorosamente? Ter muitos amantes ou poucos? Ter um amante ao longo prazo ou vários ao curto prazo?
Difícil simplificar a questão, uma pessoa com vários amantes pode ser uma pessoa considerada pelos amantes como um meio e não um fim em si mesmo. Pego o exemplo de uma mulher que é vista como aquela que oferece sexo sem muito esforço de conquista para um grupo de amigos. Porém, uma pessoa pode estar em um relacionamento ao longo prazo e não ser valorizada pela outra parte; várias mulheres casadas sofrem violência doméstica no Brasil. Do mesmo modo, uma pessoa que tem vários relacionamentos podem vivenciar menos prazer afetivo-sexual do que uma pessoa que tem apenas um, e vice e versa. Essa encruzilhada de questões é negligenciada no conceito de solidão da mulher negra porque é escolhido um “guarda roupa” ideal de relacionamento amoroso.
A lógica do conceito de solidão da mulher negra é: “homens namoram mulheres negras, mas na hora de casar, casam-se com brancas ou mestiças” (MENDOÇA, 07 de junho de 2016). Ao considerarem casamento oficial como critério de valorização das mulheres negras elas indiretamente reforçam a obrigatoriedade da hierarquização dos relacionamentos, e pior, reclamam por não terem a mesma oportunidades que as mulheres brancas e mestiças como se os relacionamentos amorosos devessem adotar a mesma lógica do mercado de trabalho. Reproduzem a lógica da economia capitalista na intimidade das pessoas como se fosse necessária uma competição (AKOTIRENE, 27 de janeiro de 2022) [2].
Ademais, é obvio que existem pessoas racializadas às quais buscam soluções alienadas para se igualarem com o padrão branco, e a busca por um casamento com uma pessoa branca é um exemplo disso. Entretanto, isso atinge todos os gêneros sexuais. Tantos homens negros, tanto mulheres negras, utilizam de táticas de sedução com interesses oportunistas caso caiam na alienação. Santificar as mulheres negras e colocarem como somente sofredoras dessa corrida alienadora é criar uma visão não humana das mulheres negras, pois a desumanização não ocorre somente ao estereotipar determinadas pessoas racializadas com aspecto negativos, e sim também as definir como incapazes de fazer coisas “ruins” simplesmente porque elas são de determinada etnia.
Grande parcela dos abolicionistas utilizaram o argumento racista sobre os negros serem passivos e dóceis, por isso deveriam ser integrados na sociedade brasileira de forma mais humana. A ideia era clara, garantir a transição do modo de produção escravista preservando a justificativa ideológica do porque as pessoas negras não estavam em cargos de poder (CHALHOUB, 2018) [3].
Todavia, se o branco também criou o mito de que ele não poderia fazer coisas ruins porque ele é branco, não devemos reproduzir isso trocando o branco pelo negro, pois repetiremos a mesma lógica racista dos criadores brancos. Devemos destruir a lógica racista e não a modifica-la, o conceito de solidão da mulher negra apenas acrescenta um aspecto de gênero nessa lógica, e o pior, se volta contra o homem negro igualando a opressão patriarcal deles contra mulheres de sua família com a violência do Estado sobre a população negra. Expandindo esse conceito para mulheres negras do sistema penitenciário, Santa Akotirene em entrevista à “Folha de Pernambuco” falou:
"Há excesso de mulheres negras encarceradas que não conseguiram negociar com a polícia a impunidade quando se opuseram às violências de gênero praticadas contra elas. Há outra parcela presa porque seus maridos as obrigaram a levar drogas ou celulares na vagina para que eles preservassem masculinidades hegemônicas no tocante a sexualidade ou fossem os administradores das galerias e circulação dos bens de serviços (AKOTIRENE, 8 de setembro de 2018).
Ou seja, mulheres negras não devem se arriscar casos os seus homens negros corram risco de serem violentados, inclusive sexualmente, mesmo sendo ocorrências rotineiras dentro das cadeias. A violência e a violência do estupro não devem ser extirpadas da sociedade, se for em cima de homens negros é permitida!
Em nome da luta antimachista Santa Akotirene ignorou o aspecto de classe; o culpado não é mais o Estado que aprisiona a população negra e sim os homens negros manifestando o egoísmo ao pedirem ajuda às mulheres negras a fim de não sofrerem violências na prisão!
Isso ocorre porque o critério de casamento oficial da solidão das mulheres negras também é elitista. Deixemos mais explicito, o critério de valorização das mulheres negras eclipsa a “lanterna de classe”. Como é sabido, a maioria dos negros e negras são pobres no Brasil e o casamento ainda é um evento social, que por sua vez, exige grandes gastos financeiros. O casamento somente no civil sem festa ainda é minoritário no país; há uma mentalidade social que casamento é motivo para comemoração com familiares e com os amigos. Assim, grande parcela da classe trabalhadora tem namoros longos, pois ela não pode se dá ao luxo de fazerem casamento iguais aos famosos ricos, casamentos expressos. E namoros longos é igual mais tempo de convivência; logo, é igual a mais tempo para poderem se separar. Muitos casais da classe trabalhadora moram junto antes de se casar na esperança de casarem oficialmente, e essa vida de casado gera um “divórcio” antes de “casarem”. Sem dizer que grande parte dos casais até mesmo abandonam esse projeto de gasto financeiro. Ronaldo Vainfas escrevendo sobre o Brasil colônia comenta:
"O fracasso ou a limitação do casamento no Brasil, alegando, por outro lado, as dificuldades encontradas pela maioria da população em atender às exigências burocráticas e financeiras do matrimônio eclesiástico, a instabilidade social e a mobilidade espacial das camadas pobres da Colônia e no caso dos escravos, a tradicional oposição dos senhores dos cativos "(1995, p.77).
Por acaso existe mal no casamento de facto? Porque casamento deveria passar pela lógica do Estado e das tradições cristãs? Esse mesmo Estado e essa mesma tradições que negaram por décadas o reconhecimento de escravizados de se casarem?
O critério do casamento oficial como valorização das mulheres negras também peca ao não considerar que o padrão de embranquecimento está envolvido em uma relação dialética de classe. Em um país de classe dominante branca, a estética predominante será branca porque os donos do poder também são os donos das narrativas (Isso não ocorre somente no Brasil como ocorre também no México e no Peru, aonde a população é majoritariamente de povos originários, mas foram colonizados por espanhóis brancos). É por isso que jogadores negros de futebol se casam em grande maioria com mulheres brancas, pois a assimilação ideológica ocorre juntamente com o avanço financeiro pessoal, principalmente para sujeitos que enriquecem em fase de vida aonde não atingiram a sua maturidade intelectual. Grande parcela dos jogadores de futebol não tem senso crítico porque chegam no “topo econômico” tendo apenas ensino médio. Se nem a graduação brasileira forma senso crítico aos seus alunos o que dirá o ensino médio?
Clovis Moura na sua tipologia do negro metropolitano enfatiza a agressividade sexual como uma manifestação do homem negro em tornar a mulher branca mero objeto sexual exibindo-a em lugares públicos. Ao fazer isso, o homem negro concomitantemente subestima a mulher negra e o homem branco. Essa espécie de revanche colonial simbólica está interligada com os afetos da subalternidade, da ansiedade e da ambiguidade, paixões (no sentido espinosano de deixar passional) predominante na população negra brasileira (1994, p.216-217). Assim a “palmitagem” pode tanto representar aceitação de que no Brasil existe uma democracia racial (uma atitude de subalternidade), tanto uma verbalização oposta ao pensamento, em outras palavras, uma malandragem (cinismo) negra em relação ao branco. O conceito da solidão da mulher negra ignora os afetos da ambiguidade e da ansiedade e define todas as formas de “palmitagem”[4]como subalternação.
Todavia, a ascensão social possibilita que o homem negro tenha o seu interesse amoroso retribuído pela mulher branca, pois sem o suporte econômico a chance de ele ser visto pela mulher branca como um ser inferior são maiores até mesmo quando os dois estão na mesma situação econômica. Nesse sentido, o reconhecimento da mulher negra pelo homem negro é maior em casos aonde esse homem negro é das classes subalternas, uma vez que as mulheres negras não alienadas não têm uma visão de que homens negros são inferiores. Homens negros ricos e homens negros pobres não estão com isso em mesma situação social; logo, não podem ser colocados como se tivesse o mesmo desafeto pelas mulheres negras. Mas Santa Akotirene ignora essa questão, para ela:
"A verdade é que, para nós, a solidão se tornou um posicionamento político. Parcelas significativas estão fora do mercado afetivo devido a cor, a bagagem acadêmica, a corporeidade, o vitiligo, ou, porque recusam relações aonde estejam escondidas, produzindo sofrimento psíquico para outras mulheres que veem o salário do companheiro servir só para pagar hotel clandestino, ao invés de quitar a escola do menino, e isto, sim, favorece a feminização da pobreza, bem como a pauperização das mulheres negras" (27 de janeiro de 2022).
Sabe a independência financeira que as mulheres negras devem ter? Jogue no ralo, ser feminista negra agora é ter um namorado negro que banque o seu filho! Sabe aquele fardo ao qual espreme o homem negro devido a submissão econômica e que ele gosta de aliviar namorando um pouco? Esquece, o dever dele é bancar o filho da namorada negra independente de que tipo e de que tempo contém o relacionamento dele com ela, se ele não fizer isso ele é um ser egoísta que não quer assumir a mulher negra e seu filho!
E a mãe que espera um pouco mais para conhecer o seu companheiro antes de deixá-lo conviver com seu filho(a) para que o garoto(a) não sofra nenhuma violência física ou sexual? Ou se ela faz isso para que o garoto(a) não sofra nenhuma violência psicológica que um rompimento do relacionamento entre ela e o companheiro pode gerar? Não é feminista negra, tem que ser bancada!
Relacionamento para Santa Akotirene tem que ser o padrão de monogamia da família tradicional, o mesmo padrão europeu ocidental imposto durante a colonização e escravidão.
Além disso, se beleza não é tudo nas escolhas do coração, um negro pode escolher uma branca para se casar sem ser considerado “palmiteiro”, pois não necessariamente isso será o reconhecimento que a amada é esteticamente bela aos seus olhos. Se é válido as pessoas escolherem se relacionar amorosamente com outras pessoas independente do gênero, porque a etnia estética deveria ser um critério pra se relacionar amorosamente? Em entrevista ao “Jornal da manhã da Bahia”, em 9 de janeiro de 2020, Santa Akotirene enfatiza sua escolha pessoal em se relacionar somente com homens negros somente por serem negros, qual “moral” ela tem para criticar os brancos que só namoram brancos por serem brancos e os homens negros alienados que preferem namorar brancas?
Por fim devemos destacar que o conceito de solidão da mulher negra não faz um recorte na categoria de casamento de homens negros com mulheres brancas entre “casou porque ama” e “casou porque é alienado ou tem interesse de se embranquecer”. Como foi mencionado o caso dos jogadores de futebol negros podem ser considerados como uma questão social, mas fora dessa categoria fica difícil definir. Somente em uma análise psicológica individual seria possível entender o que motivou as ações do homem negro ao fazer tal escolha pela parceira.
Essa objetividade rasa do conceito de solidão da mulher negra deve ser afastada da militância negra e dentro das forças de esquerda porque como foi enfatizado só serve para afastar as mulheres negras dos homens negros.
Referências:
AKOTIRENE, Carla. Entrevista à Folha de Pernambuco. 8 de setembro de 2018. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-que-e-interseccionalidade/ . Acesso em 24 de maio de 2023.
__________________Entrevista à Tatiane Mendonça do UOL. 07/06/2016. Disponível em: https://www.geledes.org.br/sobre-amor-e-cor/. Acesso em 24 de maio de 2023.
___________________Entrevista ao Jornal da manhã da Bahia. 9 de janeiro de 2020. Disponível: https://globoplay.globo.com/v/8222940/ . Acesso em 24 de maio de 2023.
___________________Texto publicado no Instagram. 5 de janeiro de 2022. Acesso em 24 de maio de 2023
______________Texto publicado no Instagram. 27 de janeiro de 2022. Acesso em 24 de maio de 2023
BELCHIOR, Antônio Carlos Gomes. Apenas um Rapaz Latino Americano. 1976.
CHALHOUB, Sidney. Literatura e Escravidão. In: Schwartz, L.; Gomes, F (orgs). Dicionário da Escravidão e da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras. 2018.
MOURA, Clóvis. Dialética Radical do negro no Brasil. São Paulo: Anita Garibaldi. 1994.
VAINFAS, Ronald. Trópicos dos pecados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1995.
Notas:
[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UFF, pesquisador vinculado ao Laboratório Cidade e Poder. E-mail: raphael_barroso@yahoo.com.
[2] Akotirene utiliza o conceito de mercado, como se os relacionamentos estivessem na mesma lógica comercial.
[3] Em “Literatura e Escravidão” Sidney Chalhoub dá diversos exemplos do homem negro como sendo cordial de maneira inatas dentro da literatura abolicionistas.
[4] "Palmitar" e suas derivações "palmitagem", "palmiteiro", "palmiteira" são neologismos criados para interpretar o ato de uma pessoa negra se envolver de forma romântica com uma pessoa branca.
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